Projeto de lei que regula modalidade aguarda sanção de Temer
Anaïs Fernandes
SÃO PAULO
A regulamentação de duplicatas eletrônicas, aprovada pelo Senado na semanada passada, pode melhor o acesso de pequenas e médias empresas a financiamento e injetar mais dinheiro no mercado de crédito, apontam especialistas ouvidos pela Folha.
A duplicata é um título emitido a partir da comercialização de uma mercadoria ou serviço em vendas a prazo. Quando o vendedor tira a fatura, ele pode extrair a duplicata. Sua emissão é facultativa, mas é uma opção acordada em contrato para o credor que quer fazer o crédito circular. O documento é uma espécie de comprovante do valor a receber a que tem direito o fornecedor.
Na quarta-feira (17), o Senado aprovou o projeto de lei que cria um registro digital centralizado para essas duplicatas. Os títulos, hoje dispersos e muitos deles em papel, passariam a ser obrigatoriamente registrados eletronicamente em certificadoras autorizadas pelo Banco Central. O texto aguarda a sanção do presidente Michel Temer, cuja equipe econômica patrocinou a proposta.
Pelo projeto, poderão ser registrados no sistema todos os atos relacionados ao trâmite de uma duplicata, como a apresentação, a inclusão de informações e a formalização do pagamento. Caberá ao CMN (Conselho Monetário Nacional) instituir diretrizes para orientar o registro das duplicatas sob o novo modelo.
Especialistas dizem que a expectativa é que haja interoperabilidade entre as registradoras, de modo que se a duplicata for registrada em uma, poderá ser consultada nas demais.
Hoje, a checagem das informações de uma duplicata é feita manualmente, segundo Rubens de Camargo Vidigal Neto, consultor jurídico da Anfidc (associação dos participantes em fundos de investimentos em direitos creditórios) e sócio do PVG Advogados.
“A instituição liga para o devedor, pergunta se a dívida de fato existe, faz a análise individualizada das informações. Isso gera custo. Para conferir se a duplicata já não foi cedida a um terceiro, precisa ir até o cartório, não tem uma maneira economicamente viável de fazer essa checagem”, afirma.
Agora, passaria a existir um processo único definido para a geração de duplicata eletrônica, verificação de validade, acompanhamento do seu ciclo de vida, diz Fernando Kalleder, presidente da CRDC (Central de Registro de Direitos Creditórios), empresa que atua no segmento de recebíveis e tem como sócia majoritária a Associação Comercial de São Paulo. Segundo ele, uma duplicata tem prazo médio de 45 dias.
Apesar de empresas do setor de recebíveis já trabalharem com duplicatas eletrônicas, estritamente pela Lei das Duplicatas, de 1968, esses títulos deveriam ser emitidos em papel.
“Na teoria jurídica precisava do papel, se não, não seria possível executar o título. Mas a jurisprudência ia cada uma para um lado, alguns aceitavam a duplicata eletrônica, outros não. Essa lei avança ao fastar a insegurança jurídica”, diz Viviane Muller Prado, professora da Escola de Direito de São Paulo da FGV.
A ideia é que as duplicatas eletrônicas ajudem a evitar fraudes, deem maior transparência às transações e aprimorem o sistema de garantias, o que poderia levar a uma redução nos juros bancários cobrados das empresas.
Muitos negócios, principalmente os menores, usam essas duplicatas para antecipar capital de giro ou como garantia em operações de crédito junto a instituições financeiras.
No desconto de duplicata, por exemplo, a empresa transfere a titularidade do documento para o banco em troca da antecipação do valor que teria a receber. Para fazer esse pagamento antecipado, a instituição financeira cobra juros (ou seja, não paga ao fornecedor o valor integral devido originalmente), mas passa a ser credora daquele título, assumindo o risco de calote.
Sem um sistema centralizado para consulta e acompanhamento das duplicatas, especialistas apontam que é mais difícil para os bancos comprovarem a veracidade do documento.
“São comuns fraudes com duplicatas frias, emitidas sem que haja uma transação comercial real por trás, ou então duplicatas falsificadas, com alteração dos valores”, diz Marco Antonio da Costa Sabino, sócio do Mannrich e Vasconcelos Advogados. “A própria perda da duplicata física é um risco”, acrescenta.
Com essa assimetria de informação, bancos dizem que precisam embutir no custo do crédito a chance de aquela garantia não ter lastro, tornando maior seu risco de sofrer um calote e, consequentemente, as provisões necessárias.
“Grande parte da composição das taxas de juros é o risco de inadimplência. Com a duplicata eletrônica, há um controle maior sobre o título, tornando a operação de menor risco. A gente acredita que as taxas nessas operações possam ser reduzidas”, afirma Miguel José Ribeiro de Oliveira, diretor de estudos e pesquisas da Anefac (associação dos executivos de finanças, administração e contabilidade).
DINHEIRO NO MERCADO
Segundo a CRDC, a produção de crédito envolvendo duplicatas somou R$ 825 bilhões no ano passado. Com a entrada em vigor da lei, a empresa estima um potencial adicional no volume de crédito via recebíveis de R$ 280 bilhões até 2023.
“O fato de a duplicata eletrônica agora poder ser lei deve atrair para esse mercado quem até então não estava dentro dele e encontrava outras formas de garantir suas opções de crédito. Esse mercado deve crescer significativamente”, afirma Kallender.
Ele calcula ainda que, no primeiro ano após transcorrido o prazo de adaptação do mercado à nova lei, cerca de R$ 40 bilhões que estavam “presos” no sistema de financiamento sob a forma de sobregarantias poderiam ser liberados ao crédito.
“A redução da assimetria de informação e o aumento da transparência devem valoriza a duplicata, diminuindo a percepção de risco a ela associada. Consequentemente, deve haver uma redução no excesso de garantias hoje exigidas pelos bancos em operações com duplicatas, liberando dinheiro para o mercado”, afirma.
Prado, da FGV, pondera que será preciso observar qual o custo às empresas para o registro dessas duplicatas eletrônicas. “É provável que o banco prefira essa via porque dará mais segurança jurídica a ele, mas isso vai ter um custo para as empresas, que terão de emitir o título dentro desse ambiente virtual. Esse gasto precisa ser compatível com a diminuição do custo do empréstimo”, afirma.
Para Claudio Marçal, presidente da Anoreg/BR (Associação dos Notários e Registradores do Brasil), com exceção das duplicatas que são levadas para desconto em banco, não haveria necessidade de tornar o registro eletrônico obrigatório para todos os títulos.
“Vai acabar gerando um ônus desnecessário ao empresário. A central vai cobrar por todas as transações envolvendo aquela duplicata”, afirma.
Como a lei tem 120 dias, contados de sua publicação após sanção presidencial, para entrar em vigor e ainda requer definição de suas diretrizes pelo CMN, a expectativa do mercado é que a duplicata eletrônica comece a operar nos novos moldes em meados do próximo ano.
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